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O Marco Civil da Internet e a legislação brasileira

Editoria: Vininha F. Carvalho 20/05/2010

A revolução tecnológica que presenciamos transforma automaticamente a forma de interação entre os seres humanos. Se antes apertávamos as mãos, agora apertamos o botão do mouse, se antes assinávamos um contrato, agora inserimos nossa senha no certificado digital, se antes estudávamos na biblioteca, agora temos o mundo de informações em uma simples tela de computador ou no celular, se antes viajamos pelo mundo, agora podemos ver o planeta inteiro pela Internet.

Poderíamos ficar horas a fio com referidos exemplos, mas o fato é que não há mais como tentar se esquivar da nova era em que vivemos, na qual o avanço tecnológico surpreende e espanta a compreensão do ser humano.

Agora é mais fácil ser percebido pelo mundo e, porque não, fazer “girá-lo” de acordo com a nossa vontade, pois não há restrições ou barreiras que impeçam a manifestação do pensamento, a exposição de idéias, criações e reflexões, enfim, agirmos dentro do direito de nos expressarmos, bem como absorvermos também todas as informações produzidas por terceiros.

Porém, jamais podemos deixar de esquecer que referidas garantias de liberdade não podem esbarrar em nenhum ordenamento jurídico ou colidir com direitos de terceiros e é exatamente nesse contexto que iniciamos o estudo para confrontarmos o que já é previsto em nossa legislação acerca da Internet e das novas tecnologias, o que ainda somos carentes ou precisamos de uma melhor adequação.

De fato, consideramos que para cerca de 95% de todos os atos praticados através das novas tecnologias e/ou Internet já temos uma legislação específica ou aplicável, seja em âmbito tributário, trabalhista, penal, cível etc.

Na esfera tributária podemos citar, por exemplo, a Nota Fiscal Eletrônica, o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) e a Lei 11.196/05, que dispõe sobre as isenções para inovações tecnológicas.

No Direito Trabalhista, principalmente depois da Emenda Constitucional n.º 45/04, podemos citar os casos envolvendo ilícitos através de e-mails corporativos, como ofensas e desvios de informações confidenciais, nos quais a jurisprudência já pacificou a possibilidade de monitoramento, concluindo pela licitude das provas formadas através das referidas mensagens eletrônicas.

No campo criminal, então, nem sem fale: calúnia, injúria, difamação, ameaça, estelionato, quebra de sigilo funcional, peculato eletrônico, violação de software, concorrência desleal, violação de segredo profissional, interceptação de comunicações telemáticas e informáticas, quebra de sigilo bancário, pornografia infantil, tráfico de entorpecentes, racismo, tudo ocorrendo através dos meios eletrônicos, são alguns dos crimes já revistos.

No Direito Civil, através da aplicação do Código de Defesa do Consumidor e de alguns dispositivos genéricos do Código Civil, os julgados dos Tribunais brasileiros estão bastante avançados nos seguintes aspectos, por exemplo:

• Responsabilizar provedores de conteúdo de Internet que não adotam qualquer medida para remover o conteúdo indevido inserido por terceiros caso sejam previamente cientificados (Art. 186 do Código Civil). Importante destacar, ainda nesse item, que alguns julgados já consideram que há responsabilidade objetiva, ou seja, independentemente de culpa, dos referidos provedores pelo risco da atividade (Art. 927, § único do Código Civil);

• Sobre a identificação de infratores cibernéticos, responsabilizar os provedores de acesso - que são as portas de entrada e de saída da rede mundial de computadores e, portanto, empresas aptas à fornecer os dados dos usuários que utilizam os serviços para finalidade ilícita – caso não guardem referidas informações pelo prazo de 03 anos (Art. 186 do Código Civil combinado com a Recomendação do Comitê Gestor da Internet).

No Brasil já são milhares de decisões judiciais acerca das implicações jurídicas das novas tecnologias, demonstrando, de fato, que a nossa legislação, em qualquer área, contempla boa parte de tudo o que precisamos, sendo necessário, apenas, alguns ajustes, em nossa opinião, resumidamente, no seguinte sentido:

• Provas:

(i) Obrigatoriedade de cumprimento das recomendações do Comitê Gestor Internet Brasil (http://www.cgi.br/publicacoes/documentacao/desenvolvimento.htm) e do The Internet Engineering Task Force (IETF), conforme RFC3871 – Operational Security Requirements for Large Internet (http://www.faqs.org/rfcs/rfc3871.html), sobre preservação dos registros eletrônicos (números de IP, datas e horários GMT). Estes registros devem ser fornecidos somente em caso de ordem judicial, seja na esfera cível ou criminal;

(ii) Obrigatoriedade de preservação de conteúdo pelos provedores, pelo prazo mínimo de 30 dias, nos casos de notificação extrajudicial de parte interessada, sendo prorrogáveis por mais 30 dias, também, com expressa solicitação;

(iii) Obrigatoriedade de seguir os manuais técnicos de segurança para quem prover acesso sem fio à Internet, com inserção de senhas e, se possível, criptografia. Caso contrário, de identificar o usuário (nome, data de nascimento, nº no CPF, nº do RG, endereço e telefone) pelo prazo de 03 (três) anos. Os dados devem ser fornecidos somente em caso de ordem judicial, seja na esfera cível ou criminal;

(iv) Possibilitar a interceptação de dados telemáticos e informáticos também para crimes punidos com pena de detenção se estes forem praticados através dos meios eletrônicos (Alterar a Lei 9.296/96), obviamente sempre com ordem judicial;

• Crimes:

(i) Criar o tipo penal da invasão do domicílio virtual, somente na forma dolosa;

(ii) Criar o tipo penal para a disseminação de códigos maliciosos, com intuito de causar dano ou obter vantagem indevida, somente na forma dolosa;

(iii) Aumentar a pena máxima para os crimes contra a honra praticados pelos meios eletrônicos;

(iv) Da mesma forma, aumentar a pena máxima para o crime de concorrência desleal (Art. 195 da Lei 9.279/96), se praticados através dos meios eletrônicos.

Feitas essas considerações preliminares entendemos que o Marco Regulatório Civil da Internet, com o seu texto atual (Minuta de Anteprojeto de Lei para Debate Colaborativo – Seção IV Revisada), está confuso e, em diversos artigos, equivocado, e se assim for mantido possivelmente trará um risco enorme à tudo que já foi construído, transformando a Internet em “faroeste”, uma terra sem Leis.

Vejamos:

• O Art. 7, inciso I, do Marco Civil, repete o Art. 5º, inciso XII da Constituição Federal, combinado com a Lei 9.296/96, o que poderá trazer confusão no entendimento sobre a quebra de sigilo lícito de fluxo de comunicações e o mero fornecimento de dados cadastrais. Ou seja, não precisaria existir;

• O Art. 14 do Marco Civil dispõe sobre o dever de manter os registros de conexão à Internet pelo administrador do sistema pelo prazo máximo de 06 (seis) meses. Ou seja, não há prazo mínimo para a guarda, mas apenas prazo máximo. O ideal seria atender a recomendação do Comitê Gestor da Internet de guardar referidos dados por 03 (três) anos;

• O Art. 16 do Marco Civil dispõe que a guarda de registros de acesso à Internet dependerá de autorização expressa do usuário. Sobre esse assunto, importante ressaltar que muitas vezes uma investigação sobre um crime de pornografia infantil ou racismo, para não citar outros, somente é possível através dos referidos registros de acesso. Na forma que referido artigo 16 do Marco Civil está escrito, para essas investigações, os criminosos teriam que autorizar previamente a guarda dos dados, o que obviamente não irá ocorrer. Precisamos que os registros de acesso à Internet também sejam armazenados pelo prazo de 03 (três) anos;

• A nova redação do Art. 20 do Marco Civil somente prevê a responsabilidade do provedor de serviço de internet em razão de danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiro se for intimado judicialmente e não atender a respeito.

Referido artigo é desnecessário, pois:

-(i) se houver uma ordem judicial o provedor deverá cumprir de qualquer forma, sob pena, possivelmente, de crime de desobediência;

-(ii) qualquer cidadão que sofra um ilícito precisará buscar o judiciário, que já está sobrecarregado, e arcar com as custas de um processo, fora os honorários ao advogado, para que o ilícito seja removido do ar pelo provedor;

-(iii) a demora para prolação da ordem judicial poderá causar ainda mais danos à vítima pois o conteúdo prosseguirá na Internet, exposto ao mundo.

Diante dos comentários supra, como todos nós queremos uma Internet livre para a prática das condutas lícitas dentro de nosso Estado Democrático de Direito, mas com segurança, identificação e punição para aqueles que utilizam as novas tecnologias para práticas ilícitas, consideramos que o Marco Regulatório Civil, de acordo com o seu texto atual, somente trará um retrocesso em nossa legislação, possibilitando que os infratores, sob o manto do anonimato, vedado em nossa Constituição (Art. 5º, inc. IV), possam navegar com os seus “navios piratas” clandestinamente e sem rastros.

Autoria:

- Renato Opice Blum é advogado e economista, sócio do Opice Blum Advogados, Coordenador do Curso de MBA em Direito Eletrônico da Escola Paulista de Direito, Presidente do Conselho Superior de Tecnologia da Informação da Fecomercio e Professor em Direito Eletrônico em diversas instituições;

- Rony Vainzof é advogado, sócio do Opice Blum Advogados, Coordenador Assistente do Curso de MBA em Direito Eletrônico da Escola Paulista de Direito, Vice-Presidente do Conselho Superior de Tecnologia da Informação da Fecomercio e Professor em Direito Eletrônico do Mackenzie e outras diversas instituições.